CHARLEY VARRICK, ou O HOMEM QUE BURLOU A MÁFIA, como é conhecido no Brasil, é o filme definitivo de Don Siegel, por mais que o diretor tenha outros trabalhos que possam ser colocados como tal. Era um mestre, um artesão ao mesmo tempo um autor ao seu modo, portanto outros trabalhos podem ser definitivos dependendo do dia. No caso, o último filme do Siegel que eu revi foi CHARLEY VARRICK, então neste momento é o que eu vou eleger como o filme definitivo do Don Siegel. Os enquadramentos, a montagem, a caracterização dos atores e a construção dos personagens, a trilha sonora de Lalo Schifrin, tudo confere ao filme a essência definitiva no cinema do homem.
Dá a impressão de que não há um plano sequer em excesso. Cada cena demonstra uma precisão e concisão exemplares. Siegel não se exibe filmando, é sempre dentro de uma economia, é discreto, parece que tá completamente devotado a um objetivo nobre, de obter a essência de cada plano, de cada sequência, do melhor resultado possível no menor tempo possível. O que impressiona é que esse senso de eficiência poderia tornar o filme apenas ritmado, bem estruturado, um filme divertido, mas vazio, um passatempo. Não é o que acontece. Siegel entrega imagens muito refinadas esteticamente (vários planos externos são belamente enquadrados e fotografados), e realmente se importa com os personagens e a história que conta, aproveitando ao máximo o roteiro, os atores e cada sequência.
A trama é sobre como um dos últimos dos mavericks do assalto ao banco acaba sendo caçado por tudo o que compõe a violência americana: a sociedade, o Estado, a máfia. Charley é um pequeno empresário esforçado cujos negócios estão em declínio e sem pensar duas vezes, vira assaltante de bancos. Só que o novo golpe dá ruim: além de perder a esposa, ele ainda acaba com um problemão nas mãos. Sem saber, roubou um grande montante, desproporcional ao tamanho modesto da agência, e deduz que o dinheiro pertence à máfia. Agora, está na mira da polícia e dos mafiosos, e ainda precisa lidar com um comparsa nada inteligente (Andrew Robinson) que só pensa em torrar o dinheiro o mais rápido possível.
Diferente da maioria dos filmes de assalto, CHARLEY VARRICK não é um filme que se concentra nos planos elaborados do crime até o clímax do roubo. Ele já começa com o assalto ao banco, que desencadeia o conflito e as complicações da história. É um filme de “golpe que deu errado”. O filme gira em torno da tentativa de Varrick de sobreviver à retaliação da máfia por conta desse fruto do acaso.
Fica destacado que um dos trunfos de CHARLEY VARRICK são seus personagens, todos bem definidos, mesmo os que apareçam brevemente. Não há um só personagem, principal ou secundário, sem uma característica interessante ou cativante, todos têm uma verdadeira dimensão humana: o diretor do banco desesperado com a situação; a vizinha lasciva, apesar da idade; o armeiro deficiente físico e impiedoso nos negócios; a fotógrafa sexy e cheia de personalidade; o xerife empático e determinado; o cúmplice alcoólatra e estúpido vivido pelo Andrew Robinson, que foi o assassino em DIRTY HARRY. E temos Molly, o capanga encarregado de recuperar o dinheiro para a máfia, que merecia um filme inteiro só pra si, um desses canalhas carismáticos que amamos ver nesse tipo de filme. Joe Don Baker dá ao personagem sádico, machista e racista uma presença inegável. Com sotaque texano e roupa de cowboy, o brutamontes fumante de cachimbo tem um ar simpático e até digno, o que contrasta totalmente com o prazer que sente em torturar e matar. O tipo de sujeito que Faria Anton Chigurh, o personagem de Javier Barden em ONDE OS FRACOS NÃO TEM VEZ, tremer na base...
E, claro, há Charley Varrick, um daqueles personagens que Siegel tanto aprecia, um herói do velho mundo enfrentando a brutalidade do mundo moderno, recorrendo a métodos antiquados para tentar sobreviver à prisão e assassinos. Em um cenário desolado, Varrick representa um mundo que está desaparecendo. Fleumático, reflexivo, astuto, longe de alguns arquétipos do gênero. Ele nem deseja realmente todo aquele dinheiro, sobretudo quando descobre a origem. É, antes de tudo, um homem que tentou ganhar a vida à margem de grandes organizações, legais ou ilegais. Seu desejo de ficar fora de problemas é tal que sua primeira reação é tentar devolver o dinheiro do roubo à máfia. Incomum para um “herói” desse tipo de filme…
Até porque a maioria dos filmes americanos parece precisar de um “centro moral”. Se o foco está em personagens maus ou amorais, espera-se que eles recebam o que merecem no final. Quando isso não acontece, o filme precisa, pelo menos, colocar vilões contra vilões. Uma vez que o público supera a ausência de moralidade, ele pode até se envolver com o passado e as motivações dos personagens criminosos, mas geralmente ainda escolhe lados, torcendo para que certos infratores prevaleçam sobre adversários ainda piores. Charley Varrick, quase por convenção, é quem devemos apoiar. Mesmo sendo ele quem arquitetou um assalto que resultou na morte de pessoas inocentes. E passa o resto do filme tentando salvar sua própria pele. Sua principal característica é o pragmatismo. A única emoção que expressa é uma certa tristeza pela esposa morta. Apesar da vida criminosa, admiramos sua rapidez de raciocínio e astúcia. Ele não confia em ninguém e sempre está um passo à frente de todos.
Apesar da insatisfação de Matthau com o resultado final, sua atuação como Charley Varrick é notável. Não é o Matthau da comédia. Sua forma direta de agir e ausência total de vaidade criam uma confiança e autoridade peculiares, sem diminuir o senso de perigo que o cerca. Por ser um criminoso, ficamos ainda mais incertos sobre o seu destino do que estaríamos com um protagonista “honrado”.
Varrick representa, de certa forma, a figura mítica do americano apegado à sua independência e liberdade (o slogan de sua empresa é the last of the independents), mas sem cair na caricatura. E é aí que está a inteligência de um roteiro que nunca tenta idealizar o homem. Apesar de suas qualidades, ele continua sendo um assaltante de bancos que age com poucos escrúpulos e pensa, antes de tudo, em seu próprio interesse e sobrevivência. Se Varrick de fato encarna certos valores (provavelmente caros a Don Siegel), está longe de ser um símbolo imaculado. E são essas nuances e ambiguidade que dão profundidade, credibilidade e originalidade ao personagem.
É principalmente através de Varrick que passa algumas reflexões que o filme instiga, como a luta desigual entre o indivíduo e o poder, aqui representado tanto pela máfia quanto pelos “grandes grupos” que impediram o herói de prosperar como empreendedor independente. Essa valorização do indivíduo diante das grandes organizações é uma tradição de Siegel. Outro personagem que simboliza essa luta desigual é o diretor do banco roubado por Varrick. Suspeito de traição pela máfia, esse homem modesto e consciencioso (diz a John Vernon: “Não sou um homem ambicioso, as pessoas valorizam a forma como restaurei o banco. Pela primeira vez na vida, encontrei um lugar que amo.”) percebe com desespero que sua existência não tem valor para os poderosos com quem se aliou, e que ele não tem nem força nem vontade para fugir. Seu caso ilustra, assim como o de Varrick, a solidão do indivíduo que só queria uma vida tranquila, mas acaba enfrentando uma organização que o ultrapassa.
Don Siegel, ao longo de sua carreira, não tentou combater os “poderosos”; ele encontrou uma forma de fazer filmes bem vistos pelos estúdios, nos quais expressava, com humildade, discrição e moderação, suas observações e talentos como cineasta. É onde ele se conecta ao herói de CHARLEY VARRICK. É esse olhar sóbrio e humano que Siegel lança sobre os personagens e cenários, junto com o discurso sutil inserido em uma trama policial muito bem conduzida, que fazem de CHARLEY VARRICK não só um crime movie eficiente, mas um verdadeiro filme de autor. De um dos grandes que o cinema americano já teve.
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