Quando A POLÍCIA DA ESTRADA (Electra Glide in Blue) foi lançado, em 1973, o gênero dos filmes de motoqueiros, os biker movies, já estava em declínio, os carros já haviam se tornado o veículo preferido para a rebeldia e o caos. Mas o sucesso de SEM DESTINO, de Dennis Hopper, em 1969, abrira a porteira para uma enxurrada de produções sobre motoqueiros em suas fantasias sobre liberdade, algumas com mais interesse filosófico, outras destituídas da camada existencial que a ode de Dennis Hopper à estrada buscava alcançar.
É nesse cenário que James William Guercio - então um produtor, compositor e músico de 27 anos no auge da carreira, famoso por trabalhar com a banda Chicago - decide filmar algo diferente. Filho e neto de projecionistas, Guercio crescera assistindo repetidamente a clássicos como RASTROS DE ÓDIO e OS BRUTOS TAMBÉM AMAM, cultivando desde cedo o sonho de um dia realizar um filme. O acaso colaborou quando seu amigo David Picker, presidente da United Artists, propôs financiar um pequeno filme independente pra ele com duas condições inegociáveis: orçamento máximo de um milhão de dólares que não poderia ser ultrapassado e entrega do filme na data estipulada. Em troca, Guercio teria controle artístico total. O sujeito escolheu filmar um roteiro de Robert Boris inspirado em um caso real sobre a misteriosa morte de um motociclista no deserto.
Guercio decidiu ir na contramão do espírito da época. Faria um filme anti-contracultura, quase um contraponto direto a SEM DESTINO. Em vez de contar a história pela perspectiva de outsiders hippies, ou anti-heróis, o protagonista seria o policial rodoviário de moto John Wintergreen (Robert Blake), cujo sonho é se tornar detetive. Wintergreen tem bom físico, é bastante elogiado pela "namorada" pelo vigor na cama, mas é baixinho e, talvez, inteligente demais para o que faz. Passa os dias parando carros que ultrapassam o limite de velocidade e aplicando multas, entediado, até confidenciar ao parceiro acomodado, Zipper (Billy “Green” Bush): “Eu gostaria de ser pago para pensar.”
A oportunidade parece surgir quando Wintergreen se depara com uma cena de um possível assassinato, que tinha toda a pinta de suicídio, e desvenda o caso. Promovido para trabalhar à paisana, torna-se protegido de Harve (Mitch Ryan), um detetive mais maduro, que pelo modo de se portar e vestir já faz brilhar os olhos de Wintergreen. A convivência, no entanto, logo o decepciona. Harve é um sujeito violento e preconceituoso, mais pose que de fato bom naquilo que faz. Sem contar uns detalhes enfraquecidos que a namoradinha de Wintergreen revela para deixar Harve constrangido. Quando Wintergreen o confronta com a resolução do caso, assina sua sentença, é rebaixado e volta para sua moto e para as multas de trânsito.
O assassinato da trama, na verdade, funciona como um mcguffin: não é o centro da narrativa, mas um artifício para mover o que realmente importa. O foco real é o estado de espírito do protagonista e sua busca por um lugar melhor para si. É o que torna A POLÍCIA DA ESTRADA profundamente existencial. Wintergreen percebe que não tem lá muita alternativa na vida e mesmo nas escolhas que faz as consequências talvez não sejam as melhores, o que o deixa frustrado, angustiado e sem perspectiva. É um homem calmo, justo (quase justo demais), mas sem perfil para detetive, e ele sabe disso, embora se recuse a desistir. Vive quase na fronteira entre a contracultura e a autoridade. Ele compreende e se identifica com muitos ideais hippies, mas está preso ao corte de cabelo curto e ao uniforme policial, sendo visto como “o inimigo” pelos moradores de comunas. Ao interrogá-los, fica nervoso, mas é gentil e respeitoso, até Harve entrar em cena com brutalidade. Ao sair, Wintergreen é chamado de “porco” e pisa, para completar a humilhação, em esterco de porco, sujando as botas de que tanto se orgulha.
Guercio filma de maneira a capturar tanto a introspecção dessa figura central quanto a paisagem. Sua câmera se aproxima dos rostos, corpos, mãos e gestos, de pequenos detalhes dos cenários, mas se abre em planos longos e contemplativos para mostrar o horizonte do Arizona, as montanhas dos westerns de Ford, com desertos e estradas infinitas, paisagens grandiosas do imaginário americano. Por vezes, o filme realmente evoca um faroeste clássico, e Wintergreen faz referências a Alan Ladd, astro que também sofria com a baixa estatura. O aspecto visual é primordial por aqui e Guercio fez questão de ter Conrad L. Hall (BUTCH CASSIDY, FAT CITY) como diretor de fotografia. Apesar do salário de Hall ultrapassar o orçamento destinado a essa função. Guercio, então, reduziu o próprio salário para 1 dólar a fim de garantir Hall como seu diretor de fotografia. Mas, apesar disso, os dois divergiam bastante em relação ao visual do filme. Chegou-se a um acordo: Guercio, que como já disse, cresceu influenciado pelos filmes de John Ford, queria filmar as cenas externas com uma estética tipicamente “fordiana”. Em troca, Hall poderia filmar as cenas internas da maneira que desejasse. O resultado é notável.
Acredito que o fato da produção não ter conseguido autorização para as filmagens nas locações não deve ter influenciado esse detalhe, mas o filme não poupa a instituição policial de uma visão bastante negativa. Zipper, por exemplo, é o estereótipo do agente racista, corrupto e gatilho-fácil. Harve segue pelo mesmo caminho, e até o chefe da força policial local não é mostrada de forma amigável, reforçando a percepção de que a corporação não tem lá grandes virtudes. Wintergreen é um anacronismo. Íntegro, capaz de multar até um detetive de Los Angeles furioso, raramente saca a arma e, como veterano do Vietnã, parece nutrir repulsa à violência gratuita. Mas o preço de perseguir o “sonho americano” é alto, significa abrir mão dos próprios valores.
Nem os policiais nem os hippies parecem se encaixar no mundo que ocupam por aqui. Guercio mostra como é fácil se perder em si mesmo, deixando que a estrada aberta, em vez de libertar, se torne um espaço de solidão e alienação. Ao contrário de SEM DESTINO, a estrada de A POLÍCIA DA ESTRADA é de tédio e frustração. Em um estande de tiro, Wintergreen descarrega balas nas cabeças de Dennis Hopper e Peter Fonda, estampadas em um pôster. Para ele, símbolos nocivos que incentivaram jovens a abandonar tudo, sem raízes, para serem "livres". Mas ao mesmo tempo é um paradoxo, ele entende a mensagem, mas não consegue vivê-la.
Apesar do peso dramático, Guercio insere um certo humor irônico irresistível que atravessa todo o filme. Wintergreen paquerando duas jovens diante de uma sorveteria e contando histórias sobre Alan Ladd, ou saindo vestindo o terno cuidadosamente para trabalhar e percebendo que esqueceu de colocar as calças. E há também pelo menos uma sequência de ação memorável, uma perseguição de moto eletrizante, filmada com maestria e um uso de câmera lenta tão eficaz que deixaria Sam Peckinpah orgulhoso. É realmente uma pena que seja o primeiro e único filme que Guercio realizou na vida. Aparentemente, ele chegou a começar a dirigir TOM HORN (1980), penúltimo filme de Steve McQueen, mas acabou sendo demitido com uma semana de trabalho...
Assim como SEM DESTINO, o filme termina de forma trágica, com um desfecho semelhante para seu protagonista. Mas aqui, a sensação é de fracasso inevitável, Wintergreen “perdeu o jogo” e nós entendemos exatamente o que isso significa. No fim das contas, A POLÍCIA DA ESTRADA se revela uma dessas obra raras, um estudo de personagem profundo, visualmente deslumbrante e tematicamente ousado. Um faroeste existencial travestido de drama policial, que desmonta tanto o mito da estrada quanto o ideal romântico da contracultura. Uma prova da força do cinema americano dos anos 1970 e uma experiência que permanece única até hoje.
Foi lançado pela versátil em DVD na caixa Cinema Policial vol. IV.