Uma das primeiras lembranças que tenho de ROLLING THUNDER, e que já causaram um impacto imediato, não foi nem do filme em si. Foram as imagens que encontrei pela internet ao tomar conhecimento da existência dessa obra. Não lembro exatamente como isso aconteceu, mas me recordo nitidamente do que vi: esse sujeito com um gancho no lugar da mão, manuseando munição, preparando seu revólver. Era o tipo de imagem que dispensa legenda, contexto ou convencimento. Bastou isso. Eu soube, ali mesmo, naquele instante, que assistir a ROLLING THUNDER seria uma obrigação cinéfila.
Isso foi por volta de 2008. Eu já tinha o blog e cheguei até a escrever algumas linhas sobre minha primeira experiência com o filme. Naquela época, ROLLING THUNDER já havia sido redescoberto, em parte graças ao entusiasmo de Quentin Tarantino, mas também, e talvez principalmente, pela morte do diretor John Flynn, em 2007. Ao longo dos anos, voltei a ele algumas vezes, e recentemente fiz uma maratona completa da filmografia do Flynn. Hoje, é um daqueles filmes que fazem parte do meu imaginário pessoal de filmes favoritos, cuja grandeza só se torna mais evidente a cada revisão. É por isso que rever importa, para nunca esquecer exatamente por que amamos certos filmes. E ROLLING THUNDER ainda tem um sabor especial, o fato de ter sido injustamente esquecido logo após seu lançamento. Mesmo com sua redescoberta, ainda me pergunto se foi realmente visto pelos cinéfilos que se dispõem a olhar além dos lançamentos do momento. Fica aqui o lembrete, e a recomendação.
ROLLING THUNDER é um daqueles filmes emblemáticos da metade dos anos 70 que, direta ou indiretamente, encaram as cicatrizes deixadas pela Guerra do Vietnã. Está na mesma linhagem de obras como TAXI DRIVER (com o qual mantém uma conexão profunda), O FRANCO ATIRADOR, AMARGO REGRESSO e tantos outros títulos que traduzem, em diferentes tons, a ressaca moral e emocional de um país em frangalhos pós-Vietnã. Com roteiro originalmente escrito por Paul Schrader, depois bastante alterado e, em muitos aspectos, aprimorado por Heywood Gould, o filme caminha entre dois registros distintos: de um lado, um thriller seco, brutal, impregnado de vingança; do outro, um retrato melancólico de um tempo em que os Estados Unidos pareciam afundar num caos interior, tanto individual quanto coletivo.
A trama começa com um clima de falso otimismo. Ex-prisioneiros de guerra voltando para casa ao som de uma música sentimental. Entre eles, estão Charles Rane (William Devane) e Johnny Vohden (Tommy Lee Jones). Rane é o nosso protagonista, e logo se percebe que, por trás dos óculos escuros e da fachada de herói condecorado, há algo quebrado nele. O retorno ao lar é desconfortável, seu filho não o reconhece, e a esposa... Bom, vamos dizer que ela não esperou fielmente por ele. Um tal de Cliff (Lawrason Driscoll), que trabalha no departamento de polícia local, aparece para dar carona à família e, quando ela diz “Você se lembra do Cliff?”, o espectador já entende a situação.
A casa foi mantida exatamente como ele deixou, numa tentativa de facilitar sua readaptação. Mas o que era pra ser um gesto afetuoso acaba expondo o absurdo de tentar recriar uma realidade que já não existe mais. As coisas só pioram quando sua esposa confessa que está com Cliff e quer o divórcio. A atuação de Devane é um testemunho do talento desse ator subestimado: a confissão não provoca gritos nem desespero, apenas o silêncio e a frieza de Rane. Ele toma um gole de cerveja e diz que aquilo foi “um pouco demais” para ele.
Em outro momento, numa cena tensa e perturbadora, Cliff aparece na garagem para “conversar como homens civilizados” e até lhe oferece uma cerveja. Em vez de reagir com ódio, Rane deixa visivelmente desconfortável, não menciona a traição e em vez disso, fala sobre uma tortura específica que sofreu em Hanói. Ele entrega uma corda a Cliff e pede que a amarre em seus pulsos, atrás das costas. Rane então instrui: “puxe até ouvir os ossos estalarem.” Cliff puxa a corda, Rane revive Hanói em flashbacks. Cliff começa a suar, e Rane grita para que ele puxe mais. Cliff não aguenta e solta a corda. Rane diz que o segredo para suportar a tortura é aprender a “amar” a corda. As questões de Cliff em relação a situação deles, para Rane, é irrelevante.
A virada da trama acontece quando Devane recebe uma homenagem de uma loja local, um dólar de prata por cada dia que passou como prisioneiro, totalizando cerca de 2.500 dólares. É aí que um grupo de criminosos ineptos decide invadir sua casa para roubar o valor. A execução do plano é tão desastrosa quanto a ideia inicial: cinco homens para roubar uma quantia que mal rende 500 dólares para cada um... E para conseguir esse dinheiro, decidem torturar justamente um veterano resistente a torturas, que passou anos sofrendo nas mãos de vietcongs. A consequência é trágica, eles matam sua esposa e filho e ainda mutilam sua mão com um triturador de pia.
No hospital, a mão de Rane é substituída pelo tal gancho que ele afia até se tornar uma arma mortal. O mesmo gancho que me deixou hipnotizado antes mesmo de eu assistir ao filme.
Recuperado fisicamente, mas quebrado emocionalmente, o protagonista inicia uma caçada silenciosa aos responsáveis pelo massacre de sua família. Com todo o seu foco voltado para isso, ele traça um caminho brutal pelo Texas ao México, e o filme nos leva mais fundo na mente de Rane, agora completamente obcecado, deixando buracos de gancho nas mãos e outras partes mais íntimas de qualquer um que se coloca em seu caminho.
Rane conta com aliados nessa jornada, como uma mulher local chamada Linda Forchet (Linda Haynes), que se vê como uma espécie de fã de Rane. Aparentemente, a cidade tinha um programa onde mulheres locais usavam um broche de soldados que estavam no exterior; Linda usou o de Rane durante todo o tempo em que ele esteve no Vietnã. É uma personagem interessante que merece destaque. Carrega, ao mesmo tempo, a doçura da empatia e a melancolia da solidão. Ao se aproximar de Rane, um herói torturado que ela admira de longe desde os tempos de guerra, Linda busca pertencer a algo maior, talvez até resgatar a si mesma através da devoção a alguém mais ferido do que ela. Seu desejo de conexão se confunde com uma atração por essa dor masculina mal resolvida, típica da América pós-Vietnã. Ainda assim, ela nunca parece ingênua, mas compreende o abismo emocional de Rane, e mesmo sem saber exatamente como alcançá-lo, tenta ficar ao seu lado, como quem escolhe acompanhar um homem prestes a desaparecer de vez dentro de si.
Além de Linda, temos o já citado amigo vivido por Tommy Lee Jones, Sargento Johnny Vohden, que esteve no mesmo campo de prisioneiros que Rane. Em determinado momento, o protagonista vai até Vohden e diz que encontrou os culpados pelas mortes da esposa e filho. O diálogo minimalista entre eles revela a conexão entre dois veteranos destruídos por dentro. Palavras secas que ecoam o conceito central de Schrader/Gould: o cinema pode (e deve) ter um efeito transcendental, tanto sobre os personagens quanto sobre o espectador. Não se trata de encher cenas com palavras, mas de deixar que olhares, gestos e silêncios falem por si. Esse estilo de diálogo minimalista em ROLLING THUNDER é potente, ainda que imbuído de masculinidade estoica:
— “Achei eles,” diz Rane.
— “Quem?”, pergunta Vohden.
— “Os caras que mataram meu filho.”
— “Vou pegar meu equipamento.”
De certo modo, ROLLING THUNDER pode ser visto como o primo bastardo de Taxi Driver. Como o roteiro foi amplamente reescrito, Paul Schrader acabou reaproveitando muitas ideias daqui no filme de Scorsese. Mas enquanto a psicose crescente de Travis Bickle (Robert De Niro) em TAXI DRIVER é difícil de decifrar, a descida do Major Rane à loucura é mais direta e visível. Sabemos que Rane está quebrado por dentro após anos de tortura como prisioneiro no Vietnã, e que, ao retornar, encontra uma vida civil à qual já não consegue mais pertencer. Até que a violência invade sua casa e o empurra para uma jornada de vingança. Com Travis, nunca temos clareza sobre o que, de fato, o consome, o que torna sua espiral ainda mais inquietante. Já ROLLING THUNDER carrega uma objetividade crua e urgente, talvez por ter sido feito para o circuito de drive-ins, um público marginal que, para o bem ou para o mal, espera sua dose explícita de loucura junto à violência. Em outras palavras, tem que fazer sentido, ou parecer que faz. Sutileza, nesse contexto, não costuma sobreviver a um engradado de cerveja barata.
No entanto, apesar de um filme é simples na forma, mais direto, não deixa também de ser profundamente denso em subtexto. Flynn filma essa descida ao inferno fazendo um retrato sombrio da América, onde a violência parece ser a única solução pra tudo. É uma das obras mais contundentes já feitas sobre o trauma pós-guerra, e talvez o melhor exemplar do tema dentro do cinema americano. Há uma tensão constante nas entrelinhas, personagens que expressam mais o silêncio do que nos diálogos, e uma sensação de desespero contido. Schrader teria dito que em seu roteiro original não havia esposa nem filho, o protagonista era apenas um homem desfeito pela guerra. Ele considerou que a família foi uma adição “comercial”, mas ironicamente são esses vínculos criados no roteiro de Gould que tornam a dor ainda mais palpável e crível, refletindo os dramas reais de muitos ex-combatentes.
Em certo ponto, o filme entra no território de Peckinpah ao levar Rane e Vohden a uma cidade de fronteira com o México cheia de néon, prostitutas e decadência. Cães do inferno caçando os assassinos da mulher e filho de Rane. Os bares estão repletos de gringos bêbados e tipos sujos, evocando os prostíbulos poeirentos e decadentes de TRAGAM-ME ALFREDO GARCIA. A catarse da violência em Flynn tem um tom quase operístico, embora mais direto que o balé sangrento dos filmes de Peckinpah ou o pesadelo alucinado do tiroteio final de TAXI DRIVER. Mas isso não torna o clímax explosivo de ROLLING THUNDER menos impactante. O tiroteiro final que Flynn filma é objetivo, austero, mas que se torna um estudo de ultra violência, onde o peso de cada tiro, cada bucho levando chumbo grosso, deixa um gosto amargo. Apesar de extremamente satisfatório.
Acho que a força de ROLLING THUNDER, especialmente no clímax, é melhor resumida por uma troca de palavras entre uma prostituta mexicana e Vohden. Enquanto ela tira a roupa, ele se prepara num quarto imundo para o massacre planejado por Rane. Ela pergunta:
— “Que porra você tá fazendo?”
— “Vou matar um monte de gente,” responde Vohden, encaixando a espingarda com um estalo seco.
Flynn desenvolve o filme em um ritmo lento e metódico, com cada camada de violência sendo introduzida à conta gotas na vida de Rane, tudo antes do grande evento em que sua esposa e filho são mortos, roubando-lhe qualquer chance de recomeço. Ele perdeu sua família para a guerra, perdeu anos de vida para a guerra, agora retorna carregando cicatrizes psicológicas e físicas imensas, apenas para encontrar um mundo que ainda não terminou de chutá-lo, jogando-o ao chão mais uma vez e deixando este homem sem alma sem qualquer luz orientadora restante, exceto a violência.
E há uma frieza na violência de ROLLING THUNDER. Por mais empolgante que seja, e a entrega de Tommy Lee Jones nessas falas citadas é eletrizante em um sentido animalesco e masculinamente bruto, o filme exemplifica como esses homens foram moldados como assassinos puros. São como armas que falam, quase incapazes de verbalizar qualquer coisa em suas vidas diárias, enxergando apenas missões, combates e lealdade entre irmãos de armas.
À medida que Rane enfrenta seus próprios problemas, sua comunicação com Johnny revela que o amigo passou por muito do mesmo, com dificuldades para se readaptar e um comportamento frio e distante que só piora a situação. Quando Rane vai até a casa de Johnny para pedir ajuda em sua vingança, tudo o que consegue dizer à família de Johnny é uma mentira sobre aonde estão indo e uma despedida ao pai de Johnny, ambos entregues de forma fria e trajando o uniforme do Exército. Esses homens não tiveram sequer tempo para se “desligar” por anos, sempre usando o uniforme, literal ou figurativamente, e, quando finalmente têm a chance de vestir novamente para lutar, é impossível resistir. Se algum dia deixaram de ser assassinos, agora têm a chance de voltar a ser.
Mas, no mundo de ROLLING THUNDER, esses homens apenas removem suas máscaras de “homens de família ajustados” para revelarem novamente suas verdadeiras naturezas. Seu país e seus inimigos os transformaram nisso; agora, eles canalizam seu treinamento a serviço de uma vingança justa contra um inimigo cruel e indiferente. É frio e brutal, mas ao mesmo tempo empolgante e eletrizante, com cada ato de violência no filme trazendo um peso a mais que realmente impacta. Estes são os homens que o mundo violento criou. Estes são os homens que foram devolvidos à sociedade e mandados agir “normalmente” enquanto suas mentes ainda estão em chamas.
No Brasil, foi lançado como A OUTRA FACE DA VIOLÊNCIA.