14.8.25

HARDCORE (1979)

 

HARDCORE nos apresenta a descida aos infernos de um homem que parte à procura da filha desaparecida, cuja trilha ele reencontra nos submundos de Los Angeles, mais precisamente no universo do cinema pornográfico. George C. Scott interpreta esse pai, Jake Van Dorn, totalmente desconectado de certas realidades e perdido em um mundo cuja existência não tinha o menor contato. Homem de negócios bem-sucedido, cauvinista e profundamente puritano, vivendo numa pequena cidade isolada do Michigan, ele se vê subitamente mergulhado em um mundo sórdido que abala todas as suas crenças e convicções. De olhar perdido, expressão fechada, e ocasionalmente usando camisas havaianas, o sujeito percorre as ruas de L.A. como um cão errante, completamente desorientado e movido por uma raiva interior crescente e cada vez mais incontrolável.

Filho de Grand Rapids, Michigan, e criado numa comunidade calvinista rígida, o diretor e roteirista Paul Schrader injeta muito de si nessa narrativa. A trajetória de Jake reflete um conflito interno, de um lado a fé e o moralismo herdados, de outro a descoberta de um mundo que sua religião condena, mas que se infiltra, de forma mais ou menos explícita, no cotidiano americano. O filme explora essa contradição sem maniqueísmo. Embora HARDCORE possa soar puritano à primeira vista, Schrader também critica o fanatismo religioso, mostrando seus adeptos como figuras imperfeitas e, por vezes, hipócritas.

O calvário de Jake é retratado com paralelos claros à provável jornada da filha: peep-shows, filmagens de pornôs baratos, bordéis e clubes de sadomasoquismo. O uso de luzes de néon e ambientes saturados em vermelho vivo reforça o choque entre a pureza que Jake acredita representar e o universo decadente no qual se vê obrigado a entrar. Schrader desenvolve uma relação de atração e repulsa com a liberação sexual, observando como a banalização do sexo o transformou em um negócio lucrativo e padronizado, onde mulheres são exploradas, mal pagas e dependentes da generosidade dos clientes para sobreviver. Ele tempera o drama com toques de humor, ironizando aspirantes a diretores de cinema cujos primeiros trabalhos consistem em pornôs vagabundos, filmados em quartos de motel, mas com pretensões “autoriais”. Numa das minhas sequências favoritas, ele finge ser um diretor de filmes pornôs e realiza às pressas teste com jovens atores de filmes adultos para identificar o homem que contracenou com sua filha e passa de uma situação cômica, com Scott de peruca e bigode falso, pra um surto violento com uma luminária quebrando na cabeça do rapaz.

Destaco outras sequências (num filme cheio de boas cenas). Há, antes de tudo, aquela que considero a cena-chave da obra: o momento em que George C. Scott descobre o que aconteceu com sua filha. Sem aviso prévio ou pistas, o detetive decadente que ele contratou (um personagem delicioso, interpretado pelo genial Peter Boyle) o conduz a uma pequena sala de cinema lúgubre e lhe projeta o filme pornô no qual, cercada por dois homens, aparece sua filha desaparecida. É uma cena muito difícil, prolongada de maneira estranha, talvez para nos fazer sentir mais intensamente a angústia do personagem, e Scott se sai de forma brilhante. No limite de exagerar, caminhando sobre a corda bamba, ele é simplesmente perfeito, e culmina com seus gritos desesperados “Turn it off! Turn it off! Turn it off!”. Essa cena deveria ser exibida como exemplo em todas as boas escolas de interpretação.

O contraste entre personagens é fundamental, além do detetive de Boyle, uma relação mais tensa e conflituosa, temos Nikki (Season Hubley), profissional do sexo, que funciona como contraponto ao rigorismo de Jake. Com Nikki há uma convivência mais amistosa. Ela também uma alma perdida, tentará guiar, ainda que um pouco, nosso protagonista em suas investigações. Nikki poderia ser um retrato do futuro da filha de Jake caso permaneça presa a esse universo. Há aqui alguns dos melhores diálogos que Schrader já escreveu, embates entre essa dupla improvável, o pai conservador e a jovem prostituta, numa troca franca sobre crenças, moralidade e redenção, carregada de poesia e verdade. 

Sei que com o passar dos anos HARDCORE caiu um bocado no conceito de muita gente, não é esse filme subversivo que talvez cria-se uma expectativa. Mas passado esses anos todos, fazia uns 15 anos que não assistia, ainda acho um grande filme, conduzido com muita habilidade por Schrader, com aquela estética suja dos anos 70, belíssima fotografia do Michael Chapman, e com uma poderosa atuação de Scott. Mesmo tendo o desfecho que opta pela solução mais fácil, meio bizarra até, e que destoa da jornada até ali. E que mesmo assim guarda uma certa crueldade, como Jake abandonando a Nikki no meio da multidão. E aparentemente o personagem termina o filme sem uma redenção plena, sem grandes consequências da sua descida ao inferno... Ou será que teve? Não dá pra perceber muito desses fanáticos religiosos. E Schrader sabe bem disso.

Drama urbano, humano e espiritual, HARDCORE é ao mesmo tempo retrato de uma sociedade americana dividida entre a revolução sexual e a moral religiosa rígida, e um exercício cinematográfico que revela os paradoxos do próprio Schrader. Um filme indispensável para entender o diretor, mas também um retrato poderoso de uma América em que qualquer tipo de "valor", até mesmo o puritanismo, foi engolido pela lógica do capitalismo.

9.8.25

A POLÍCIA DA ESTRADA (1973)

 

Quando A POLÍCIA DA ESTRADA (Electra Glide in Blue) foi lançado, em 1973, o gênero dos filmes de motoqueiros, os biker movies, já estava em declínio, os carros já haviam se tornado o veículo preferido para a rebeldia e o caos. Mas o sucesso de SEM DESTINO, de Dennis Hopper, em 1969, abrira a porteira para uma enxurrada de produções sobre motoqueiros em suas fantasias sobre liberdade, algumas com mais interesse filosófico, outras destituídas da camada existencial que a ode de Dennis Hopper à estrada buscava alcançar.

É nesse cenário que James William Guercio - então um produtor, compositor e músico de 27 anos no auge da carreira, famoso por trabalhar com a banda Chicago - decide filmar algo diferente. Filho e neto de projecionistas, Guercio crescera assistindo repetidamente a clássicos como RASTROS DE ÓDIO e OS BRUTOS TAMBÉM AMAM, cultivando desde cedo o sonho de um dia realizar um filme. O acaso colaborou quando seu amigo David Picker, presidente da United Artists, propôs financiar um pequeno filme independente pra ele com duas condições inegociáveis: orçamento máximo de um milhão de dólares que não poderia ser ultrapassado e entrega do filme na data estipulada. Em troca, Guercio teria controle artístico total. O sujeito escolheu filmar um roteiro de Robert Boris inspirado em um caso real sobre a misteriosa morte de um motociclista no deserto.

Guercio decidiu ir na contramão do espírito da época. Faria um filme anti-contracultura, quase um contraponto direto a SEM DESTINO. Em vez de contar a história pela perspectiva de outsiders hippies, ou anti-heróis, o protagonista seria o policial rodoviário de moto John Wintergreen (Robert Blake), cujo sonho é se tornar detetive. Wintergreen tem bom físico, é bastante elogiado pela "namorada" pelo vigor na cama, mas é baixinho e, talvez, inteligente demais para o que faz. Passa os dias parando carros que ultrapassam o limite de velocidade e aplicando multas, entediado, até confidenciar ao parceiro acomodado, Zipper (Billy “Green” Bush): “Eu gostaria de ser pago para pensar.

A oportunidade parece surgir quando Wintergreen se depara com uma cena de um possível assassinato, que tinha toda a pinta de suicídio, e desvenda o caso. Promovido para trabalhar à paisana, torna-se protegido de Harve (Mitch Ryan), um detetive mais maduro, que pelo modo de se portar e vestir já faz brilhar os olhos de Wintergreen. A convivência, no entanto, logo o decepciona. Harve é um sujeito violento e preconceituoso, mais pose que de fato bom naquilo que faz. Sem contar uns detalhes enfraquecidos que a namoradinha de Wintergreen revela para deixar Harve constrangido. Quando Wintergreen o confronta com a resolução do caso, assina sua sentença, é rebaixado e volta para sua moto e para as multas de trânsito.

O assassinato da trama, na verdade, funciona como um mcguffin: não é o centro da narrativa, mas um artifício para mover o que realmente importa. O foco real é o estado de espírito do protagonista e sua busca por um lugar melhor para si. É o que torna A POLÍCIA DA ESTRADA profundamente existencial. Wintergreen percebe que não tem lá muita alternativa na vida e mesmo nas escolhas que faz as consequências talvez não sejam as melhores, o que o deixa frustrado, angustiado e sem perspectiva. É um homem calmo, justo (quase justo demais), mas sem perfil para detetive, e ele sabe disso, embora se recuse a desistir. Vive quase na fronteira entre a contracultura e a autoridade. Ele compreende e se identifica com muitos ideais hippies, mas está preso ao corte de cabelo curto e ao uniforme policial, sendo visto como “o inimigo” pelos moradores de comunas. Ao interrogá-los, fica nervoso, mas é gentil e respeitoso, até Harve entrar em cena com brutalidade. Ao sair, Wintergreen é chamado de “porco” e pisa, para completar a humilhação, em esterco de porco, sujando as botas de que tanto se orgulha.

Guercio filma de maneira a capturar tanto a introspecção dessa figura central quanto a paisagem. Sua câmera se aproxima dos rostos, corpos, mãos e gestos, de pequenos detalhes dos cenários, mas se abre em planos longos e contemplativos para mostrar o horizonte do Arizona, as montanhas dos westerns de Ford, com desertos e estradas infinitas, paisagens grandiosas do imaginário americano. Por vezes, o filme realmente evoca um faroeste clássico, e Wintergreen faz referências a Alan Ladd, astro que também sofria com a baixa estatura. O aspecto visual é primordial por aqui e Guercio fez questão de ter Conrad L. Hall (BUTCH CASSIDY, FAT CITY) como diretor de fotografia. Apesar do salário de Hall ultrapassar o orçamento destinado a essa função. Guercio, então, reduziu o próprio salário para 1 dólar a fim de garantir Hall como seu diretor de fotografia. Mas, apesar disso, os dois divergiam bastante em relação ao visual do filme. Chegou-se a um acordo: Guercio, que como já disse, cresceu influenciado pelos filmes de John Ford, queria filmar as cenas externas com uma estética tipicamente “fordiana”. Em troca, Hall poderia filmar as cenas internas da maneira que desejasse. O resultado é notável.

Acredito que o fato da produção não ter conseguido autorização para as filmagens nas locações não deve ter influenciado esse detalhe, mas o filme não poupa a instituição policial de uma visão bastante negativa. Zipper, por exemplo, é o estereótipo do agente racista, corrupto e gatilho-fácil. Harve segue pelo mesmo caminho, e até o chefe da força policial local não é mostrada de forma amigável, reforçando a percepção de que a corporação não tem lá grandes virtudes. Wintergreen é um anacronismo. Íntegro, capaz de multar até um detetive de Los Angeles furioso, raramente saca a arma e, como veterano do Vietnã, parece nutrir repulsa à violência gratuita. Mas o preço de perseguir o “sonho americano” é alto, significa abrir mão dos próprios valores.

Nem os policiais nem os hippies parecem se encaixar no mundo que ocupam por aqui. Guercio mostra como é fácil se perder em si mesmo, deixando que a estrada aberta, em vez de libertar, se torne um espaço de solidão e alienação. Ao contrário de SEM DESTINO, a estrada de A POLÍCIA DA ESTRADA é de tédio e frustração. Em um estande de tiro, Wintergreen descarrega balas nas cabeças de Dennis Hopper e Peter Fonda, estampadas em um pôster. Para ele, símbolos nocivos que incentivaram jovens a abandonar tudo, sem raízes, para serem "livres". Mas ao mesmo tempo é um paradoxo, ele entende a mensagem, mas não consegue vivê-la.

Apesar do peso dramático, Guercio insere um certo humor irônico irresistível que atravessa todo o filme. Wintergreen paquerando duas jovens diante de uma sorveteria e contando histórias sobre Alan Ladd, ou saindo vestindo o terno cuidadosamente para trabalhar e percebendo que esqueceu de colocar as calças. E há também pelo menos uma sequência de ação memorável, uma perseguição de moto eletrizante, filmada com maestria e um uso de câmera lenta tão eficaz que deixaria Sam Peckinpah orgulhoso. É realmente uma pena que seja o primeiro e único filme que Guercio realizou na vida. Aparentemente, ele chegou a começar a dirigir TOM HORN (1980), penúltimo filme de Steve McQueen, mas acabou sendo demitido com uma semana de trabalho...

Assim como SEM DESTINO, o filme termina de forma trágica, com um desfecho semelhante para seu protagonista. Mas aqui, a sensação é de fracasso inevitável, Wintergreen “perdeu o jogo” e nós entendemos exatamente o que isso significa. No fim das contas, A POLÍCIA DA ESTRADA se revela uma dessas obra raras, um estudo de personagem profundo, visualmente deslumbrante e tematicamente ousado. Um faroeste existencial travestido de drama policial, que desmonta tanto o mito da estrada quanto o ideal romântico da contracultura. Uma prova da força do cinema americano dos anos 1970 e uma experiência que permanece única até hoje.

Foi lançado pela versátil em DVD na caixa Cinema Policial vol. IV.

5.8.25

KEOMA (1976)

 

KEOMA é o canto do cisne do western italiano, o último grande spaghetti, surgindo em um momento em que o gênero declinava. E é inegável que o filme de Enzo G. Castellari está entre os mais ambiciosos, com uma tonalidade profundamente crepuscular e apocalíptica que, do ponto de vista formal, remete aos tempos áureos do gênero, como os clássicos de Sergio Leone, DJANGO, de Sergio Corbucci, e FACCIA A FACCIA, de Sergio Sollima, lançados na década anterior. Embora não seja tão lamacento quanto ao filme de Corbucci, KEOMA abre numa ambientação sombria, centrada em uma cidade fantasma, onde as casas desmoronam sob uma névoa permanente e tempestades de areia frequentes. Castellari reforça essa desolação com uma trilha sonora macabra, na qual o som do vento desempenha um papel crucial.

É nesse cenário que retorna Keoma (Franco Nero), um mestiço de origem indígena que esteve ausente por anos devido à Guerra Civil. Ao voltar, encontra sua cidade devastada por uma epidemia que assola o local, e Caldwell (Donald O'Brien), um tirano auxiliado pelos meio-irmãos de Keoma. Apenas seu pai (William Berger), já velho demais para lutar, e seu amigo George (Woody Strode), um antigo pistoleiro que se tornou alcoólatra, o acolhem de forma positiva. Keoma logo se vê protegendo Lisa (Olga Karlatos), uma jovem grávida, que perdeu o marido, assassinado pelos homens de Caldwell.

E Keoma surge não apenas como um libertador, mas como uma figura messiânica – sua longa cabeleira, a barba espessa e as vestes esfarrapadas reforçam essa iconografia. Ele prega a solidariedade e ajuda seus aliados, como seu pai e George, a reencontrarem sua dignidade para enfrentar o domínio de Caldwell e de seus capangas, incluindo seus meio-irmãos que sempre o rejeitaram. O enredo, ainda que familiar, é eficaz no embate moral entre Keoma e seus antagonistas, além de ressaltar a força dos oprimidos que se levantam contra a tirania, evocando tanto DJANGO quanto RIO BRAVO, de Hawks, e até mesmo a obra de Peckinpah.

Os atores são excelentes, mas a verdadeira singularidade do filme reside em sua abordagem mística, quase fantástica. Logo na introdução, Keoma encontra uma velha bruxa que reaparece ao longo da trama como uma espécie de profetisa do infortúnio. As sequências de combate são carregadas de estilização, com Castellari abusando de um slow motion dramáticos. O tiroteio perto do final está dentre os melhores da carreira do diretor. E Castellari leva a tragédia aos limites, culminando em uma cena de crucificação de Keoma, visualmente bela.

O filme também intercala inúmeros flashbacks que explicam sua relação com George, seu pai e seus irmãos, em sacadas temporais que por vezes remetem a Bergman. Detalhes que transcendem Keoma ao sublime e enfatizam sua permanência como um dos últimos, senão o último, western spaghetti digno de nota e reafirma Franco Nero como um dos maiores atores da era dourada do cinema italiano.